terça-feira, 22 de novembro de 2016

Desafio permanente: cuidar de si mesmo - Leonardo Boff


Ao assumir a categoria “cuidado” na relação para com a Mãe Terra e para com todos os seres, o Papa Francisco reforçou não só uma virtude mas um verdadeiro paradigma que representa uma alternativa ao paradigma da modernidade que é a da vontade de poder que tantos prejuízos trouxe.

Devemos cuidar de tudo, também de nós mesmos, pois somos o mais próximo dos próximos e, ao mesmo tempo, o mais complexo e mais indecifrável dos seres.

Sabemos quem somos? Para que existimos? Para onde vamos? Que é o ser humano na natureza? Um nada diante do infinito, e um tudo diante do nada, um elo entre o nada e o tudo, mas incapaz de ver o nada de onde veio e o infinito para onde vai (Pensées § 72).


Na verdade, não sabemos quem somos. Apenas desconfiamos como diria Guimarães Rosa. Na medida em que vamos vivendo e sofrendo, lentamente desvendamos quem somos. Em último termo: expressões daquela Energia de fundo (imagem de Deus?) que tudo sustenta e tudo dirige.  

Junto com aquilo que de fato somos, existe também aquilo que potencialmente podemos ser. O potencial pertence também ao real, quem sabe, a nossa melhor parte. Cabe elaborarmos  chaves de leitura que nos orientam na busca daquilo que queremos e podemos ser.

É nesta busca que o cuidado de si mesmo desempenha uma função decisiva. Não se trata, primeiramente, de um olhar narcisista sobre o próprio eu o que leva, geralmente, a não conhecer-se a si mesmo mas identificar-se com uma imagem projetada de si mesmo e, por isso, falsa e alienante.

Foi Michel Foucault com sua minuciosa investigação Hermenêutica do sujeito (2004) que tentou resgatar a tradição ocidental do cuidado do sujeito, especialmente nos sábios do século II/III como Sêneca, Marco Aurélio, Epicteto e outros. O  grande motto era o famoso ghôti seautón, conheça-te a ti mesmo. Esse conhecimento não algo abstrato mas muito concreto como: reconheça-te naquilo que és, procure aprofundar-te em ti mesmo para descobrires tuas potencialidades; tente realizar aquilo que de fato podes.

Neste contexto se abordavam as várias virtudes, tão bem discutidas por Sócrates. Ele advertia evitar o pior dos vícios que para nós se tornou comum: a hybris. Hybris é o ultrapssar os limites e buscar ser especial, acima dos outros. Talvez o maior impasse da cultura ocidental, da cultura cristã, especialmente da cultura estadounidense com o seu imaginado Destino Manifesto (o sentir-se o novo povo eleito por Deus) é a hybris: o sentimento de superioridade e de excepcionalidade, impondo aos outros nossos valores, sancionados por Deus.

A primeira coisa que importa afirmar é que o ser humano é um sujeito e não uma coisa. Não é uma substância, constituída uma vez por todas mas um nó de relações sempre ativo que mediante a cadeia das relações está continuamente se construindo, como o faz o universo. Todos os seres do universo, consoante a nova cosmologia, são portadores  de certa subjetividade porque tem história, vivem em interação e interdependência de todos com todos, aprendem trocando e acumulando informações. Esse é um princípio cosmológico universal. Mas o ser humano realiza  uma modalidade própria  deste princípio que é o fato de ser um sujeito  consciente e reflexo. Ele sabe que sabe e sabe que não sabe e, para sermos completos, não sabe que não sabe.

Este nó de relações se articula a partir  de um Centro ao redor do qual organiza as relações com todos os demais. Esse eu profundo nunca está só. Sua solidão é para a comunhão. Ele reclama um tu. Do eu e do tu nasce o nós.

O cuidado de si implica, em primeiríssimo lugar, acolher-se a si mesmo, assim como se é com suas aptidões e seus limites. Não com amargura como quem quer modificar a sua situação existencial. Mas com jovialidade. Acolher o próprio rosto, cabelos, pernas, seios, sua aparência e modo de estar no mundo. Quanto mais nos aceitamos menos clínicas de cirurgias plásticas existirão. Com as características físicas que temos, devemos elaborar nosso jeito de ser no mundo.

Nada mais ridículo que a construção artificial de uma beleza moldada em dissonância com a beleza interior. É  a tentativa vã de fazer um “photoshop” da própria imagem.

O cuidado de si exige saber combinar as aptidões com as motivações. Não basta termos aptidão para a música se não sentimos motivação para ser músico. Da mesma forma, não nos ajudam as motivações para sermos músico se não tivermos a aptidão para isso. Desperdiçamos energias e colhemos frustrações. Ficamos medíocres, o que não engrandece.

Outro componente do cuidado para consigo mesmo é saber e aprender a conviver com a dimensão de sombra que que acompanha a dimensão de luz. Amamos e odiamos. Somos feitos com estas contradições. Antropologicamente se diz que somos ao mesmo tempo sapiens e demens, gente de inteligência e junto a isso gente de rudeza. Somos o encontro das oposições.

Cuidar de si mesmo é poder criar uma síntese onde as contradições não se anulam mas o lado luminoso predomina.

Cuidar de si mesmo é amar-se, acolher-se, reconhecer nossa vulnerabilidade, poder chorar, saber perdoar-se, perdoar e desenvolver a resiliência que é a capacidade de dar a volta por cima e aprender dos erros e contradições. Então escrevemos direito apesar das linhas tortas.


Fonte: http://cartamaior.com.br/?%2FColuna%2FDesafio-permanente-cuidar-de-si-mesmo% 


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